sábado, 6 de março de 2010

Mitos e verdades sobre o medo em La teta assustada

Realidade e ficção são receitas aplicadas pelo tio de Claudia Llosa em sua narrativa literária. Inspirada ou não por ele, o recorte dramático do período de terror no Peru dos anos de 1980 contado na história da misteriosa Fausta (Magaly Solier) rendeu à cineasta um Urso de Ouro, um Kikito e outros prêmios no ano passado. Me prendi à sinopse pelo interesse histórico e social no pano de fundo, na cultura e paisagem do Peru, mas a película me desvendou uma abordagem delicada sobre o medo e seus efeitos colaterais na psique. Ao mesmo tempo, La teta assustada é um filme sobre a superação da dor pela simples aceitação do afeto, da generosidade, das novas perspectivas. Também da queda dos mitos, superstições, ilusões. Além de exibir sobre a fascinante paisagem andina os costumes de um povo curioso, La teta prima pela exploração dos recursos de expressão. Fausta ouvia a mãe cantar sua desgraça desde o ventre. A pobre mulher entoa lamurosos cânticos pelos quais relata detelhes da violência sofrida, usando o olhar subjetivo da filha, de dentro da barriga. "Minha filha viu seu pênis me rasgar, me violentar", algo assim sai da sua voz definhada. Fausta acredita ter herdado o medo de ser estuprada do leite da mãe (por isso o nome da "doença da época" no Peru Teta Assustada) e, desde então, protege-se de possíveis violadores intoduzindo uma batata em sua vagina. A morte da mãe e sua obrigação em dar um jeito de sepultá-la rompe a bolha emocional que a aprisiona e Fausta descobre a vida, a liberdade. Magaly Solier também tem prêmio pela bela atuação, sem falar na perfeição de seus traços peruanos que muito lembram os da atriz brasileira Dira Paes, especialmente ao sorrir.      

Vida longa ao cinema em Santa Catarina

Encerrou ontem a mostra Brasil-Alemanha em Florianópolis e em outras cidades catarinenses por onde passou Diálogos em Cena, da ONG Comunica. Na platéia do Centro Cultural BADESC, esperei pelo lançamento da versão reduzida do documentário de Andreas Peter sobre a trajetória do maestro alemão Heinz Geyer em Santa Catarina, na cidade de Blumenau. O doc de Peter é uma grata surpresa para os que prestigiam a produção audiovisual brasileira e regional, que sabemos ser uma escolha para poucos porque exige dedicação, persistência, trabalho e amor. Os reais guerrilheiros (aqui temos muitos exemplares deles) das artes não desistem facilmente, aprendem a fazer de tudo, não se perdem nas etapas. Estão salvos de serem aventureiros (temos de lamentar por esses) em incursões vaidosas por esse universo fascinante, fazendo mau uso dos recursos públicos e privados que conseguem por leis de incentivo ou em concursos dos editais públicos.

Retorno ao momento em que a idealista e realizadora Kátia Klock (diretora de outro imperdível documentário de 2009, Sem Palavras, sobre a repressão aos imigrantes alemães e seus descendentes em Santa Catarina durante a Segunda Guerra Mundial) encerra seu relato sobre a mostra que incluiu o audiovisual no calendário cultural de celebração dos 180 Anos da Imigração Alemã em Santa Catarina, apoiado pelo Funcultural. Ela conta que percorreu um roteiro com cidades onde não existem salas de cinema, a população sem DVD fica à margem do que a TV aberta não exibe, sobretudo do que é produção de catarinenses abordando sua cultura, sua gente, sua história. A tela se abre e o que vemos ainda não é o lançamento da noite, mas um exemplo do que os catarinenses, os brasileiros e todos os contribuintes que investem nos produto cultural local, regional e nacional merecem ter acesso por meio de mostras gratuitas e programas de exibição e distribuição do audiovisual no Brasil. A professora em uma comunidade alemã, documentário com ficção escrito e dirigido por ela mesma, a professora, a personagem de uma história comum em cidades do interior desse Brasil e de interiores de muitos outros países. Irene Rios da Silva é interpretada pela filha, que ainda era um bebê quando a mãe aceitou o desafio de lecionar em São Pedro de Alcântara, a primeira colônia alemã de Santa Catarina. Não há indicados ao Oscar de melhor interpretação nesse filme, nem de melhor roteiro, nada disso. Mas há um quesito de grande valor sócio-cultural no que vimos: a história de como se construiu uma geração de cidadãos nesta pequena e singela cidade catarinense com a esperança dos imigrantes. Irene passou a primeira noite na cidade com o marido dormindo numa cama improvisada com as carteiras escolares, pois não havia transporte nem para a localidade onde ia "ensinar o português" aos pequenos descentedentes germânicos. Isso foi até ser acolhida por um casal de colonos que vivia próximo a escola (eles participam do documentário). Os depoimentos dos ex-alunos são de pura gratidão, refeltem o confronto entre o que a vida promete, quando somos crianças e jovens, e o que de fato oferece. Transparecem o orgulho que os imigrantes alemães e seus descendentes têm de falar de suas origens e do que construíram. O doc da professora Irene poderia ter sido um livro, afinal ela tem títulos lançados, mas quis experimentar a linguagem audiovisual, transformar um simples enredo da velha batalha pela educação no Brasil em arte para a reflexão e para auto-estima de uma gente que "quer se ver" ou ser reconhecida pela lente do imaginário.

Igual mérito se deve atribuir ao resultado de Andreas Peter ao debruçar-se sobre a vida do maestro alemão adotado pela maior e mais importante colônia catarinense, a de Hermann Blumenau. Heinz Geyer ganhou vida em uma animação que dialoga com as (raras) imagens em preto e branco que o diretor selecionou para remontar cenários de um passado de glórias na arte, de tristezas causadas pela guerra e pela repressão e pelo descaso recorrente com as relíquias, abandonadas pelo presente. Depoimentos de músicos que Geyer lapidou, momentos de glamour no Teatro Carlos Gomes, incenações dos pensamentos e aspirações de um gênio da música clássica, mais uma história de imigrante, com todos os ingredientes conhecidos (sangue, suor, lágrimas de vitórias e frustrações) nos levam a crer que a arte é viável. Que não se desiste, se resiste, em nome de algo muito maior. O doc Maestro Heinz Geyer trouxe para o conhecimento dos catarinenses, brasileiros e estrangeiros que ainda o assistirão em mostras e festivais (vamos torcer para isso!) não somente um capítulo brilhante da cultura catarinense, na cidade de Blumenau. Ele destaca dos amarelados, empoeirados e raros arquivos históricos remexidos por Peter a ópera assinada pelo maestro sobre a catarinense heroína de dois mundos, Anita Garibaldi, e sua saga ao lado do amado Giuseppe na luta pela liberdade para além de sua terra-mãe. Talvez muitos saberão dessa missão de Geyer ao Sul de Santa Catarina, no anos de 1960, para registrar e tornar de domínio nacional um fato de suma importância da história dessa Santa Catarina que o acolheu, ao ver o documentário do catarinense Adreas Peter. Enquanto a indústria de blockbusters tenta encontrar sua salvação, roteiros reais em pequenas produções alternativas parecem inspirar os festejados diretores da Academia. Assim como a judia sobrevivente do massacre nazista na Alemanha no filme de Tarantino (Bastardos Inglórios) incendeia (em um ato de vingança premeditada) a arte que a salvaria das cruéis lembranças de seus algozes, o maestro Geyer queimou todas as suas partituras antes de morrer. Nada deixou escrito para a posteridade, tamanha sua mágoa pelo desfecho que sua carreira teve, por ver desavalorizada a mais importante regência de sua vida, por terem lhe roubado o mais caro objeto de sua existência: a arte de encantar pessoas com a música.
Vida longa ao cinema, inspiração e perseverança dos realizadores. Lucidez aos gestores públicos e privados da cultura em nosso estado e em nosso país!