segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Experimentos e as felizes coincidências

Eis que no dia anterior ao jantar (que bela noite, gracias amigos!) de Ano Novo na casa dos Simon, naquele mesmo cenário, diante das crianças a se esbaldarem na piscina, as mulheres teciam uma colcha inteira de retalhos sobre a vida. Pelo menos três gerações reunidas, uma infidável pauta, inesgotáveis histórias de vida, um prato cheio para a recém-chegada ao grupo. Não perdia um só detalhe do que ouvia, embora meus olhos escapassem, vez ou outra, para a minha pequena serelepe dentro d'água.
O patriarca, de livro em punhos, mergulhado em Cem anos de solidão (Gabriel Garcia Márques) fazia breves incursões sobre determinados assuntos. Homem de firmes posições, mente lúcida e bem humorada que não perde a chance de contar bons causos extraídos do trabalho desbravador como engenheiro (construindo estradas) ou da vibrante trajetória sobre a qual ergueu os alicerces de sua vida e de sua generosa e numerosa família. Empresta sabedoria e acolhe em declarado afeto a todos. As quatro mulheres da casa, assim como as filhas e netas que vivem fora e agregados. A matriarca precisamente ( e preciosamente) talhada para o posto completa as lembranças, corrige uma ou outra falha cronológica das narrativas as quais abrilhanta, como musa, heroína de carne e osso, a companheira desde sempre.
Ela e a filha (a que me trouxe para o prazeroso convívio com os Simon, por intermédio de nossas pequenas Isabelas) me proporcionaram a então feliz coincidência para o início das experiências que faz tempo ensaiava.
Ao declarar meu gosto pela obra de Isabel Allende (jornalista que se lançou ao universo literário em 1982) a Sra. Simon e a filha começam a despejar seus títulos sobre o sofá da sala. O reino do dragão de ouro (esse eu quero também!) A soma dos dias, Hija de la fortuna (em espanhol, adquirido na temporada da filha na Espanha) e Afrodite, o que me fez ter de conter o impulso de pedi-lo emprestado. Esperei o momento certo, afinal não são todas as pessoas que têm o desprendimento de deixar seus livros sob a tutela de terceiros. Contei que descobri Isabel Allende pesquisando sobre cozinha regional, pratos exóticos, sobre a relação da comida com a sociedade e a história. E que, embora aquela obra, Afrodite, me despertasse maior apetite do que A casa dos espíritos, não era a hora de mais investimentos. Início de ano é sempre aquele aperto, matrícula dos filhos, impostos, faturas do Natal e de raros escapes para um lazer salutar de recesso.

Como quem oferta um prato de sua mais apurada culinária, a filha me entrega o livro nas mãos e diz para degustar mais os contos do que as receitas (afrodisíacas) do conteúdo que me apetecia. Tem razão a minha amiga, de destino preparado pelas mãos de um chef (por mais amargos que certos ingredientes pareçam, podem dar imensurável sabor à vida, se soubermos aproveitar e ela soube) sobre a função deste valioso livro que tenho em mãos. Devorei dois contos e fui para a cozinha temperar um suculento pedaço de pernil suíno com um líquido inspirado em algo que, há alguns anos, provei sobre lulas gratinadas, no litoral paulista: o molho Gengiskan, feito à base de maçã verde, gengibre e shoyu. Sua consistência original é mais pastosa, mas quis regar a tenra carne, então acrescentei um tanto de água para diluir o molho. Refrescante, aromático, aguçador de todos os sentidos. Tudo batido no liquidificador (meia maçã verde, um pequeno pedaço de gengibre sem casca e duas colheres das de sopa de shoyu). Depois de temperado com sal, limão e alho, reguei o pedaço de carne utilizando esse caldo e levei ao forno. A cor fica de um bronze mais escurecido, mas sem ressecar. Carne macia e saborosa, leve e estimulante. Umas folhas de hotelã para decorar o prato e raspas de gengibre, se quiser deixar uma pista sobre o segredo do prato. Não segui receita nenhuma, nem do livro, nem a que guardei do molho servido com as lulas. "As pessoas que ganham a vida com esforço e rezam escondidas, como você e eu, improvisam o melhor possível entre as panelas e entre os lençóis, aproveitando o que se tem à mão, sem pensar muito no assunto e sem muita pompa, agradecidas pelos dentes que restam e pela sorte imensa de ter a quem abraçar", argumenta Isabel Allende sobre o porque escrever Afrodite.
Prometo mais receitas e prosas para os próximos posts. Ah, se vou assistir Julie & Julia? Não perco por nada. Li a entrevista com Julie Powell na Marie Claire e fiquei com aquela sensação que temos de já ter ido a algum lugar, visto alguma cena ou ouvido algo. É que, quando criei esse Bom Bocado, há mais de dois anos, a ideia era colocar nele minhas vivências e sobrevivências, com letras e panelas. Tinha, ainda, a minha cozinha saudável de educação nutricional (Sinhá Saúde) para crianças em uma rede privada de ensino, em Florianópolis, e sonhava partir dela adiante, nesses trilhos. Não sei se na cozinha ou no teclado, quem sabe nos dois, retomo esse caminho. Já calcei meus sapatos de Dorothy.