sábado, 25 de setembro de 2010

Observação de humanos

Era um dia ensolarado este em que aportamos  numa das baías mais belas do mundo, a praia do Rosa, no litoral Sul de Santa Catarina. Tinha em mente um encontro há muito desejado, há três temporadas adiado. Na companhia da minha pequena Buda esperava no segundo grupo pronto para embarcar rumo à costa e avistar a beleza da vida marinha no ritual que se repete nesta época do ano em águas catarinenses, as baleias Franca e seus filhotes aproveitando as águas mais quentinhas desse berçário natural. Planejei e até sonhei apresentar ao gigante dos mares o meu filhote, conhecer o seu, captar a doçura em seus olhos. Após a palestra dos biólogos do Instituto Baleia Franca, nos equipamos e subimos na embarcação flutuante utilizada em resgates, dessas que parecem de longe uma enorme bóia. O motor assume uma velocidade de até 40 km/h sobre as ondas, valente e seguro. Em poucos minutos estamos a quase mil metros de distância da praia e o que vemos é só mar, intenso, verde, lindo e assustador por sua imensidão. As aves sobrevoam por ali como se guiassem nosso barco para o local onde estão as baleias e suas crias. Já não podemos ver a antiga igreja construída com óleo extraído da gordura que elas acumulam no período de gestação até chegar aqui. Segundo os biólogos, ao final da temporada sem se alimentar, dedicando-se exclusivamente aos bebês, as baleias exibem os ossos de tão magrinhas. Mais alguns metros e já não enxergamos outro sinal do passado que queremos esquecer, a rampa diante da igreja, por onde elas eram arrastadas já sem vida.
O silêncio do motor do barco é um aviso de que estamos a pelo menos 100 metros da área onde aparecerão. Então nada mais se ouve, além do som das águas batendo no barco, uma solidão perfeita e agradável. O capitão ensina como nos apontará a direção do avistamento, utilizando o sentido horário do relógio. Lá de cima do barco indica.
- Baleia às 11 horas!!!
  Nos voltamos para o ponto em busca da imagem mais esperada. Ansiosas, as crianças querem se levantar, mas são contidas pelos adultos. A paciência vale ouro nesta hora. Uma cauda e uma barbatana ao longe revelam o que ainda está por vir, o grande espetáculo. Alguns relatos me fizeram crer que eu teria mais do que isso. Chega o momento.
 - Atenção, baleia às 9 horas!
Em pouco tempo descubro o quanto valera a pena esperar. De repente ela surge perto do barco, uma presença escura no mar, como um submarino que emerge e se aproxima rapidamente causando até susto. Chega tão perto que toca a lateral do barco, balança fortemente bem onde estou sentada. Ficamos cara-a-cara, eu e a mamãe Franca (e ela realmente é sincera, vem daí seu nome) sorrimos uma para a outra. Procuro seus olhos, meu coração bate acelerado, meu espírito se enche de paz e minha respiração vai ficando cada vez mais lenta. Não consigo dizer nada ainda, apenas sorrir. A vontade de tocá-la é grande e sei que não sou a única, por isso os biólogos fazem recomendações sobre como devemos agir nesta hora. Consigo, então, expressar em sussurro: - olá, como você é linda. Foi exatamente a frase que disse para minha filha quando seu rostinho enrugado e quentinho enconstou no meu e nos vimos pela primeira vez, na sala de parto.
O filhote preto e branco acompanha a mãe num delicado mergulho e passa por debaixo do barco, sai do outro lado e os dois rumam mar adentro para fazer acrobacias. Esguichos de uma respiração forte que se ouve quando estão bem pertinho de nós, saltos incríveis. Como ficam muito próximas da praia (e por conta disso eram presas fáceis) são elas que nadam até nós, curiosas, querendo interagir. Há 17 anos defendendo a preservação da área de procriação da Franca no litoral Sul de Santa Catarina e pioneiro no turismo de observação da espécie nesta região, nosso sicerone, Enrique Litman, explica que as baleias são mesmo seres solitários e que chegam assim tão pertinho dos barcos também porque são inocentes. Na verdade, são elas quem nos observam. Como toda mãe, as baleias zelam pelos filhotes repreendendo-os quando se aproximam demais dos barcos sem elas. A natureza é sábia e estabelece meios de garantir a espécie. Elas aprenderam de tanto sofrer os ataques humanos, que usavam como tática fisgar o filhote, mesmo sem serventia nenhuma, para atrair as mães. Do lado de cá também evoluímos e agora não somos mais ameaça. Não com arpões e dinamites, o que já é um grande avanço. Porém, vale assistir Océanos, filme de Jacques Perrin e Jacques Cluzaud, para perceber o quanto nossa intervenção pode ser danosa quando não percebemos que os seres dos mares desse planeta merecem nosso respeito.   
Nos despedimos das quatro mães e seus filhotes felizes e certos de que elas voltarão dentro de três anos, quando estarão prontas para mais um ciclo de renovação da vida.