terça-feira, 5 de abril de 2011

Jamie e eu

Quando conheci Jamie Oliver (e isso ainda vai acontecer de verdade!) pesquisava para alguma tese  acadêmica sobre a influência da propaganda na elevação dos índices de obesidade infantil no Brasil. Os estragos já eram caso de saúde pública nos Estados Unidos e na Europa. Só que a mídia era uma pequena parte responsável pelo processo todo. Havia, ainda, os hábitos familiares, os novos padrões de consumo e de vida de pais e filhos no mundo. O fato é que não escrevi tese nenhuma e tive a chance de interferir na vida das pessoas com o que estudei e isso foi uma experiência e tanto. As circunstâncias me levaram pelo caminho e, quando me dei conta, lá estava eu. Depois de longos nove anos trabalhando exclusivamente com o jornalismo em São Paulo, diante de um desafio completamente inesperado. A cantina da escola da minha filha fecharia, já que o prestador de serviço deixara o ramo. Prestes a liderar um mutirão de mães para resolver a questão e garantir a nossa paz, saquei da manga uma proposta. Todos adoraram, mas quem quis meter a mão na massa fui eu.
O verão chegou e dediquei aqueles dias de sol à reforma do espaço, onde a Sinhá Saúde faria uma revolução no conceito de alimentação na pré-escola. O ano letivo começou e eu chorei feito criança no primeiro dia de aula, sentada no chão colorido, no fim do dia, com uma pilha de fichas nas mãos preenchidas por pais que adotariam os pacotes mensais de alimentação saudável e educação nutricional para seus flhotes na minha cantina. Seria uma imensa responsabilidade dar de comer para os filhos de outros pais, que eu nem imaginava como eram em casa, do que gostavam, o que comiam. O ato de alimentar simboliza dar amor, lida com a vida porque interfere na saúde. Mas eu estava certa de uma coisa: faria aquilo com muito afinco, colocaria as pitadas de lições que aprendi com minha mãe, com as avós da vida, as vizinhas, as tias e as amigas mais experientes, os pediatras e as leituras sobre o tema. Também contava com um dom que se revelava naquela oportunidade. Afinal, passei minha infância e adolescência na cozinha da minha mãe ao lado dela vendo o almoço e o jantar serem preparados, falando de tudo, passando o tempo sem saber que estava ali aprendendo. Minha tia fazia bolos lindos sob encomenda e, embora eu tenha acompanhado muitos deles serem confeccionados, os doces nunca foram minha especialidade. Um dia ela construiu com massa de chocolate, raspas e coberturas um trem imenso para eu comemorar meu aniversário na escola, lá no Rio. Eu era bem pequena, mas lembro como se fosse hoje. O vagão de cargas era cheio daqueles palitos de biscoito cobertos com cohocolate, imitando a lenha que era transportada diretamente para as bocas gulosas dos meus colegas de classe.
Agora eu era mãe e tia e seguia os passos de Jamie sem saber. O cozinheiro inglês era cada vez mais pop, se transformou no "melhor amigo dos pais" ao colocar ingredientes saudáveis de maneira atraente na merenda dos pequenos britânicos. Ele também não sabia que aqui na minha cantina eu acrescentava aulas de culinária para as crianças no currículo pré-escolar. Realizava atividades lúdicas, como criar nossa própria horta orgânica e ensinar com o teatro de fantoches tudo sobre os alimentos e o seu poder de promover a saúde e a felicidade desde muito cedo na vida. Vira e mexe eu esbarrava com o chef de cabelos desordenados e riso fácil, veloz com as panelas, criativo improvisador em alguma consulta a receitas pela internet. Estava sempre em busca de novidades para o cardápio da minha cantina (café da manhã, lanche, almoço e jantar) elaborado com a consultoria de uma nutricionista igualmente apaixonada pelo trabalho com crianças. Se não era assim, alguém que tomava conhecimento do que eu fazia me comparava a ele. Jamie ganhou a mídia pelos resultados que conseguiu muito rapidamente nas escolas inglesas e atravessou fronteiras. Um amigo me incentivava a tentar a rede pública de ensino. Eu ganhei um novo trabalho e o carinho daquelas crianças que me chamavam de "tia Sinhá". Sabe que até hoje, se encontro algum deles por aí, me emociono por ser lembrada assim.
Meu ano como Sinhá Saúde (esse era o nome da personagem que batizou a cantina e encantou as crianças, os pais e os educadores daquela escola de Florianópolis) foi inesquecível, todos aprendemos muito. Mas isso eu ainda vou contar em capítulos. Agora estou feliz por reencontrar Jamie num livro escrito em inglês, o meu primeiro da coleção, que é para eu afiar o idioma e poder trocar receitas com ele um dia. Voltei para as experiências que a cozinha de minha casa me proporcionam, cercada de crianças e de amigos. Meu tempo livre tem me permitido conhecer temperos, pesquisar ingredientes saudáveis, inventar moda multicolorindo pratos, testando o aproveitamento de nutrientes onde menos esperamos encontrá-los, anotando invenções, fotografando pratos, registrando depoimentos de pequenos críticos, de suas mães e pais. Já somos um ensaio de confraria. Eu tenho um sonho recheado de ideias e um apetite dandado para retomar de onde parei. Quando a escola fechou e tirei a minha última peça da cantina dizendo "até logo", sabia que não era um adeus. Desde que foi entregue pela empresa que a confeccionou, Sinhá Saúde jamais tinha saído da portinha verde alface do meu pequeno restaurante. Ela está  guardada com meu amigo Zédassilva que gentilmente emprestou seu traço para dar vida a minha personagem. Ela espera por novas aventuras e, quem sabe, ainda posará para uma foto com Jamie?